Thursday, August 02, 2007
 

Só mais uma

 

Como pode, passar do lado daquela pessoa e nem balançar a cabeça, como uma saudação de elevador. Olhar pela janela do carro, reconhecer, e voltar a olhar pro farol. A mesma pessoa que falava todo dia que te amava e você rebatia, em competição, pra ver quem amava mais - ou quem mentia mais, ou quem se enganava mais. E hoje, está ali, a poucos metros de distância, e você sequer move o pescoço.

Quando eu digo "você", estou falando de mim. Ou de você, que um dia foi alguém, e hoje não merece nem que eu sacolege minha cabeça. Não merece nem que eu cumpra o manual da educação e fale um bom dia. Olhei direito, com atenção. E é, sim, a mesma pessoa que um dia explorou meu corpo com a língua, que dormiu com meu peso em cima do dela, que dividimos as cobertas, que esfregamos as costas. Que nos apelidamos, cozinhamos, assistimos filmes - e transamos antes de entender o enredo.

A mesma pessoa que você - que fique claro, eu - investiu boa parte do seu salário em telefonemas, presentes. Em roupas pra ficar bonito. Em perfumes pra ficar cheiroso. Essa mesma, que hoje você não gastaria nem a quantia que dá ao flanelinha, que nem é por pena, é apenas receio que lhe metam o canivete na funilaria.

E agora, o mesmo traste, pára do seu lado e você, que um dia sentiu amor, noutro sentiu ódio, agora, não sente nada. Nem pra ter raiva serve. Nem ciúme. Absolutamente nada. Você ainda olha e pensa: transei com isso. Debois de tantos desejos de boa noite na orelha, agora, nem um bom dia por educação. Nada. E ainda olha, pela janela do carro, e vê aquele corpo ali, de pé, no ponto do ônibus. Aquele corpo que já esteve nu do lado do seu, em cima, em baixo. Que um dia os sons que emitia com a boca pareciam importantes. E você - quando digo você, quero dizer eu, lembre-se - nem pensa em buzinar e oferecer uma carona. Que nada! Você não tem a mínima intimidade com aquela pessoa, mesmo depois das centenas de vezes que esteve pelado com ela, quase se absorvendo. E observa aquela mesma roupinha que você já conhece. Mesmo tendo passado anos. E ainda é a mesma. Desculpe, deu vontade de rir.

Pensa tudo isso enquanto não abre o semáforo. Trinta segundos e não sente nada. Mas se sente estranho, afinal, aquela pessoa, que nem sexo tem, nem nome tem mais, não é bonita e nem feia, já esteve na sua cama e, hoje, você tem certeza absoluta que ela não existe. É só um corpo, móvel e barulhento. E fede. E todas as bobagens que disse e ouviu não têm sentido. Nunca tiveram. A diferença é que agora você - eu - sabe disso. O sinal ficou verde. Vou engatar, sair e voltar a cantar a música, que um dia me fez lembrar daquele corpo, mas, hoje, não passa de uma canção que eu adoro. A mesma música que eu amei, passei a odiar, e, voltou a ser só uma faixa do CD. Só mais uma... De novo.

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Vlad Maluf


Vladimir Maluf
jornalista

 

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