Monday, May 25, 2009
 

Morreu a minha vizinha, uma senhora. Senhorinha, como chamamos os velhos por quem temos carinho. Ela era sozinha. Não tinha filhos, nem irmãos, nem primos ou amigos. A marca registrada era um tufo de papel higiênico entre os seios. De vez em quando, ela sacava o tufo e chuchava no nariz, para ter certeza de que nenhuma secreção ia tirar a atenção da sua história. E contava sempre as mesmas.

Entre uma conversa e outra, fazia silêncio para que as vizinhas que passassem não escutassem nada. Não gostava de fofoca, e não gostava das velhas do prédio. E nem as velhas gostavam dela. Que benção, para a minha vizinha querida. A última coisa que ela queria era ser querida pela ala do fuxico da portaria.

Desdenhava as mães. Dizia que crianças eram um saco. E filhos adultos uns ingratos. Dizia não se sentir sozinha e que achava ótimo não ter companhia para nada. Mentirosa. Falava isso tantas vezes, mas eu não acreditei. De suas relações, só se lembrava de uma. E a contou centenas de vezes: fora amante, por 15 anos, de um deputado famoso, que, mais velho do que ela, morrera mais de uma década antes.

Batia no peito para dizer que jamais usou um tostão do velho. E que jamais quis que ele largasse a mulher. Queria mesmo era tê-lo, sem ser dele. Um dia, ele cobrou dela explicações sobre uma saída noturna. Claro que ela não respondeu. Contava sempre isso. Sempre... E sempre me aconselhava a não me casar. – Não caia nessa, aconselhava

Cruzava com ela, sempre de camisola azul ou um vestidinho surradinho. Ela se apoiava no meu braço. E me dava um beijo na bochecha. Dizia que eu era lindo, sempre. Às vezes, dizia que eu não era tudo isso, mas que gostava de me agradar, por isso mentia.

A senhorinha ficava inconformada com a minha solteirice. Eu adorava isso. Fazia uma lista de elogios a mim e não entendia como não havia uma fila na porta do prédio com pedidos de casamento. Falava para os porteiros que, se fosse mais nova ou mais rica, seria minha amante.

Claro, esqueci de dizer: ela adorava os porteiros. Descia duas vezes por dia com cumbucas de guloseimas. Acho que ela comprava... Não tinha cara de quem gostava de cozinhar. E sempre elogiava o serviço dos coitados, mesmo sendo sofrível – para ser gentil.

Fui descer para almoçar no domingo e o papel estava lá pregado. O velório estava em andamento e o enterro seria no fim da tarde. Eu não fui... Mas lamento profundamente não cruzar mais com ela no térreo. Nem de dar o braço para ir até o banco com ela ou o mercado. E, claro, curtir uns elogios e dar umas risadas.

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Thursday, August 02, 2007
 

Só mais uma

 

Como pode, passar do lado daquela pessoa e nem balançar a cabeça, como uma saudação de elevador. Olhar pela janela do carro, reconhecer, e voltar a olhar pro farol. A mesma pessoa que falava todo dia que te amava e você rebatia, em competição, pra ver quem amava mais - ou quem mentia mais, ou quem se enganava mais. E hoje, está ali, a poucos metros de distância, e você sequer move o pescoço.

Quando eu digo "você", estou falando de mim. Ou de você, que um dia foi alguém, e hoje não merece nem que eu sacolege minha cabeça. Não merece nem que eu cumpra o manual da educação e fale um bom dia. Olhei direito, com atenção. E é, sim, a mesma pessoa que um dia explorou meu corpo com a língua, que dormiu com meu peso em cima do dela, que dividimos as cobertas, que esfregamos as costas. Que nos apelidamos, cozinhamos, assistimos filmes - e transamos antes de entender o enredo.

A mesma pessoa que você - que fique claro, eu - investiu boa parte do seu salário em telefonemas, presentes. Em roupas pra ficar bonito. Em perfumes pra ficar cheiroso. Essa mesma, que hoje você não gastaria nem a quantia que dá ao flanelinha, que nem é por pena, é apenas receio que lhe metam o canivete na funilaria.

E agora, o mesmo traste, pára do seu lado e você, que um dia sentiu amor, noutro sentiu ódio, agora, não sente nada. Nem pra ter raiva serve. Nem ciúme. Absolutamente nada. Você ainda olha e pensa: transei com isso. Debois de tantos desejos de boa noite na orelha, agora, nem um bom dia por educação. Nada. E ainda olha, pela janela do carro, e vê aquele corpo ali, de pé, no ponto do ônibus. Aquele corpo que já esteve nu do lado do seu, em cima, em baixo. Que um dia os sons que emitia com a boca pareciam importantes. E você - quando digo você, quero dizer eu, lembre-se - nem pensa em buzinar e oferecer uma carona. Que nada! Você não tem a mínima intimidade com aquela pessoa, mesmo depois das centenas de vezes que esteve pelado com ela, quase se absorvendo. E observa aquela mesma roupinha que você já conhece. Mesmo tendo passado anos. E ainda é a mesma. Desculpe, deu vontade de rir.

Pensa tudo isso enquanto não abre o semáforo. Trinta segundos e não sente nada. Mas se sente estranho, afinal, aquela pessoa, que nem sexo tem, nem nome tem mais, não é bonita e nem feia, já esteve na sua cama e, hoje, você tem certeza absoluta que ela não existe. É só um corpo, móvel e barulhento. E fede. E todas as bobagens que disse e ouviu não têm sentido. Nunca tiveram. A diferença é que agora você - eu - sabe disso. O sinal ficou verde. Vou engatar, sair e voltar a cantar a música, que um dia me fez lembrar daquele corpo, mas, hoje, não passa de uma canção que eu adoro. A mesma música que eu amei, passei a odiar, e, voltou a ser só uma faixa do CD. Só mais uma... De novo.

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Vlad Maluf


Vladimir Maluf
jornalista

 

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